quarta-feira, novembro 22, 2006

 

Escola a tempo inteiro, família a meio tempo

Sou do tempo em que se acreditava que a escola servia para ensinar e para aprender. E se ainda hoje me perguntarem o que faz a escola, é isso que direi.
Os tempos mudam, as sociedades evoluem e os pais e mães dos alunos trabalham de manhã à noite para ganharem ordenados de miséria e contribuir para o enriquecimento de meia dúzia de patrões (empresários, desculpem).
A escola é agora chamada a responder a questões que lhe são alheias e que a sociedade criou e não resolve. Primeiro ouvem-se empresários a clamar que a escola não está a formar mão-de-obra qualificada. Convinha lembrar os senhores, que a era da revolução industrial acabou e que a escola passou a ser um espaço de aprendizagem para a vida e para a formação do ser humano pensante, crítico e culto e não para criar mão-de-obra barata. Se precisam de operários qualificados façam cursos de formação e paguem-nos. Não o façam à custa dos meus impostos, nem da educação dos meus filhos.
Depois vem a teoria da escola a tempo inteiro, para os pais poderem trabalhar. Ou seja, outra via para permitir o funcionamento do mercado de trabalho, mas que não compete à escola fazê-lo. Concordo com o princípio que a escola pode promover repostas extra-curriculares onde as famílias não necessitem de pagar para os filhos terem acesso a experiências, que de outra forma nunca teriam. Mas para isso é necessário salvaguardar o fundamento da escola e não o fazer à custa daquilo que a escola tem que realizar.
Embuido de um espírito neo-liberal grotesco, o nosso Ministério da Educação apresenta como a sua grande reforma o prolongamento do horário escolar. E aqui, mais uma vez, quando os princípios são baixinhos, o resultado é mau.
1- Estão neste momento a gastar-se centenas de milhares de euros em todo o país para pôr de pé um sistema de escola a tempo inteiro, envolvendo profissionais desqualificados, instalações improvisadas e autarcas que nunca cumpriram as suas obrigações de zelar pela escola do 1º Ciclo e que agora parece já terem rios de dinheiro para esta palhaçada. Mas para o essencial nunca há dinheiro.
2- Através de uma engenharia linguística conseguiu-se que os docentes do 1º Ciclo ficassem com a sua turma mais duas horas por semana, para além das 25, numa actividade chamada “Apoio ao Estudo” que, não sendo considerada tempo lectivo, obriga os sacrificados professores a prolongarem o seu dia de trabalho e, muitas vezes cortarem os dias a meio indo duas vezes à escola, com resultados medíocres e que só promovem o cansaço e a desautorização dos docentes.
3- Fazem-se horários lectivos cortados a meio onde os alunos vão para as actividades extra a meio do dia e depois voltam cansados e agitados, tendo o docente ficado à espera com o horário cortado e sem que lhe paguem essas horas. Isto tem enormes custos na actividade lectiva e na qualidade do ensino, mas parece que ninguém está interessado nisso. Muitas destas actividades são fora da escola em colectividades, envolvendo logísticas ridículas para o resultado final.
4- Muitos alunos ficam das 8h30 até às 17h30 na escola e, por vezes até mais, em caso dos horários duplos, revelando cansaço, desconcentração e menos valorização do essencial da escola a sério, querendo antes a escola a brincar que lhes é oferecida.
5- Os pais, que eventualmente querem ir buscar os filhos mais cedo, não podem, porque em muitos casos as horas lectivas terminam o dia e, portanto, o horário de permanência na escola passa a ser obrigatório sob pena de não terem todas as horas com o professor da turma.
6- Obrigam-se os agrupamentos a um esforço organizativo brutal, descentrando e desgastando a gestão e os docentes daquilo que realmente mereceria o seu empenho e trabalho.
Eu, que até sou pelo prolongamento de horários, nem quero acreditar que isso está neste momento a desgastar alunos, professores e verbas astronómicas, atolando as crianças de actividades a um ritmo alucinante e (pior) a ter consequências negativas na aprendizagem, na qualidade do ensino, na organização e método dos professores e na organização das famílias, que ainda poderiam ter os seus filhos consigo mais cedo.
É assim tão difícil a este ME fazer as coisas sem as estragar? Era assim tão difícil implementar as coisas com bom senso, com tempo, de acordo com as dinâmicas e necessidades de cada agrupamento de escolas? Seria assim tão difícil não comprometer os horários e as actividades lectivas? Seria tão difícil respeitar os docentes e os eu trabalho?
Não há ninguém que veja que estas palhaçadas não contribuem em nada para a qualidade do ensino nem para a melhoria da formação dos jovens?
Tudo tem um limite e esta coisa da escola a tempo inteiro vai ter custos que mais tarde virão a ser contabilizados e eu vou detestar ter que dizer outra vez...- Eu avisei.

Comments:
Excelente post!

É inadmissível o que algumas escolas estão a fazer, a intercalar as actividades de enriquecimento curricular nos blocos lectivos dos professores, quando está regulamentado que as actividades devem ter prioridade.

Se um EE quiser ir buscar o seu filho às 15.30 à escola está no seu direito, as AEC são de organização obrigatória para a escola, mas de frequência opcional para os alunos!

Obrigar crianças de 6 anos a estar na escola das 9.00 às 17.00 (fora prolongamentos) é uma violência para elas (e para os seus professores).
 
Brilhante post!...

Parece ter sido mesmo escrito por alguém que está "no terreno" (como eu) e que conhece a realidade e não num qualquer gabinete com ar condicionado da 5 de Outubro!
 
Parabéns por este post! Descreve/denuncia totalmente a situação presente, pela qual vão pagar os alunos e cujas consequências irão mais uma vez os professores procurar atenuar com esforços e dedicações quando esta equipa do ME já lá não estiver e, claro, sem que lhe venham a ser pedidas responsabilidades.
 
Todos nós "estamos a avisar" mas ninguém nos ouve :( Tenho um sentimento constante de impotência perante esta situação; sinto que já não vale a pena gastar energias na luta pois, infelizmente, o vencedor será só um e não somos nós!
 
Síntese perfeita da realidade!
Na minha escola/agrupamento os colegas do 1º ciclo queixam-se exactamente dos mesmos males: cansaço dos alunos, desatenção, perda das pequenas conquistas a nível de disciplina que vão conseguindo durante o dia (o meu agrupamento tem uma frequência "um pouco difícil" - é uma das 32!), etc.

Só tenho um reparo a fazer. O horário é da competência do agrupamento. Se está dividido foi porque o agrupamento o permitiu. As AEC são para complemento de horário, para que "as famílias estejam descansadas enquanto trabalham" (demagogia de ME, mas é esta a intenção destes tempos extra). Não servem para substituir aquilo a que os srs do ME chamaram de "expressões", até porque não são de frequência obrigatória. Assim, não podem quebrar o horário de trabalho normal dos alunos.

A Câmara do meu Concelho também tentou essa "manobra" e já voltou ao ataque com nova proposta para o próximo ano. Diz que assim pode gerir melhor os técnicos porque cada um poderia ter mais horas em vez de ter apenas 9, que é o que conseguem ter com este tipo de funcionamento (queixas das empresas, claro - querem empregar menos pessoas).
O assunto foi a conselho pedagógico e a resposta foi NÃO. O horário dos alunos e dos professores é sagrado. Se alunos/pais querem AECs têm-nas no fim das aulas (até porque os que não as quisessem ficavam "pendurados" se as actividades fossem intercaladas).
No ínicio do ano também tinham tentado outra "manobra": que o pavilhão desportivo ficasse livre naquelas horas, uma vez que a gestão é deles queriam utilizá-lo. Isto faria com que os horários dos 2º e 3º ciclos ficassem amontoados até às 15 h (só temos o pavilhão, não temos espaços exteriores). A nossa resposta também foi não. "Subalugaram" os serviços a empresas; ambos ficam com verbas já que pagam menos de metade do que recebem aos técnicos. Governem-se... não se vendam. Foi a resposta que lhes demos (a resposta foi mais súbtil :). Tivessem tido a coragem de mostrar ao ME que isto não servia a ninguém. O prejuízo para os putos (e professores) já é demasiado grande para que ainda os prejudiquemos mais só para eles poderem meter mais uns euros ao bolso.

São vocês que têm que tomar a posição de não permitir a divisão do horário.

Nota: no horário de ocupação do pavilhão há espaço e tempos para as aulas curriculares de "expressão físico-motora" de todas as turmas do 1º ciclo e do pré da escola - é uma EBI com JI... e todos fazem :)

PS: Gosto do nome do blog. Não sei se foi essa a intenção, mas tem o nome de um livro escrito por um grande professor meu - Nelson Mendes.
 
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